CAPITÃO BARROS BASTO - II PARTE
Mas a nível militar as coisas também não estavam
a correr melhor. O Estado Novo, nascido em 1933, estava a impor a sua marca
autoritária. Aliás, o próprio movimento Obra do Resgate estava também a
incomodar algumas autoridades, especialmente as religiosas pois viam que muitos
dos novos judeus, que mesmo tendo sido baptizados anteriormente, estavam a
fugir do seio da Igreja Católica. Então o Capitão começou a ser colocado cada
vez mais longe do Porto, tendo sido exonerado do comando da Direcção da Casa da
Reclusão, sua residência fixa, sendo que o escândalo que rebentou agravou mais
ainda a situação.
Dada a fragilidade das provas, os processos
penais instaurados, primeiro na policia de segurança pública e, posteriormente,
por via de nova denúncia anónima no Tribunal Militar, foram logo derrubadas e o
Capitão foi ilibado das graves acusações que lhe haviam sido imputadas. Mas o
mal estava feito: o exército abre-lhe um processo disciplinar alegando que as
cerimónias da circuncisão a que Barros Basto assistia eram imorais e
incompatíveis com a sua situação de militar! Todo o processo ignorou
propositadamente que a cerimónia e ritual da circuncisão (brit milá, em hebreu) são inerentes à religião judaica e é o sinal
da aliança entre Deus e os homens. Deus, através de Abraão, indicou a este e
aos seus descendentes a execução desta cerimónia. Curioso: em 1894 o oficial
francês Alfred Dreyfus é acusado de traição num processo todo ele tingido de
antissemitismo, que viria a ficar na história e manchada a reputação do
exército francês. Três décadas depois o caso repete-se, desta vez em Portugal,
mas o Capitão Barros Basto não vai ter o seu Émile Zola para o defender nas
páginas dos jornais. O processo disciplinar, terminado em Julho de 1937,
acarretou a sua saída compulsiva do exército. Sete meses depois, em 16 de
Janeiro de 1938, vê uma das obras da sua vida, a Sinagoga, a ser inaugurada.
Já afastado do exército, vai ter uma acção
determinante no período da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), ajudando
centenas e centenas de judeus a fugirem do ódio nazi.
Entretanto os tempos eram
outros, o ambiente político não era favorável à sua acção, à grandeza da obra
que encetou. A Obra do Resgate não era compatível para um homem só. Lentamente
esta vai caindo no esquecimento e muitos judeus voltaram a temer pela exposição
pública da sua religiosidade e regressam ao anonimato de sempre e, à medida que
os tempos iam passando, a sua religiosidade ia-se diluindo até se perder...
O Capitão vai ficando debilitado, desmotivado,
deprimido, situação a que também não foi alheia a doença e posterior morte por
tuberculose de um filho, no início da década de 50.
Barros Basto, aliás Ben-Rosh, faleceu em 1961 e
foi sepultado em Amarante, sua terra natal, envergando a sua farda de militar e
com a bandeira nacional cobrindo o caixão. Dois dias antes de falecer disse à
sua filha: «Um dia a justiça vai ser feita». Foi, mas muito tarde.
Homem
denso e culto, ao mesmo tempo provido de uma simplicidade que só os grandes
sabem ter. Dizia-nos alguém que com ele conviveu, que tinha sempre uma história
para contar, mesmo a pessoas de mais baixa instrução ou condição social. A sua
ligação à Escola Filosófica Portuense, e ao Grupo Renascença, que teve na
revista Águia o seu apogeu, mostram que o Capitão pertencia à elite do, e
parafraseando um título de Sampaio Bruno, Porto
Culto. Conviveu com Teixeira Rego, e Leonardo Coimbra, entre outros.
Intervém a nível cívico e politico. Empenhou-se
na campanha do MUD (Movimento da Unidade Democrática), em 1945. A Obra do
Resgate personificou também a resistência à Igreja Católica e ao imobilismo de
uma sociedade conservadora, com atavismos de séculos.
O processo ardiloso e cobarde que lhe montaram,
mostra o quanto ele era perigoso para o status
quo de então e gerador de muitas invejas.
Terá sido o Capitão Barros
Basto algo ingénuo em algumas das suas acções? Talvez. Deverá ter pensado que o
Estado Novo e hierarquia da Igreja Católica iam deixar em paz a Obra do
Resgate. Mas tal não aconteceu, como sabemos.
O estranho é que, em 1978, quatro anos depois do
25 de Abril de 1974, o exército português vem insistir junto da família, que
entretanto tinha começado o processo para a reabilitação do Capitão, que este
tinha sido condenado por actos homossexuais! Precisamente aqueles pelos quais
ele tinha sido absolvido à época. Para quem tinha conquistado uma Cruz de
Guerra não merecia tanto laxismo por parte das entidades militares e em plena
democracia.
Em 31 de Outubro de 2011, com o apoio do
bastonário da Ordem dos Advogados Portugueses, a neta do Capitão, Sra. Dra. Isabel
Ferreira Lopes, actual vice-presidente da Comunidade Israelita do Porto, deu
entrada no parlamento português uma petição para reabilitar a memória de Barros
Basto. Finalmente a 29 de Fevereiro de 2012 todos os parlamentares, por
unanimidade, votaram a sua reabilitação e foi oficialmente concluído que o
Capitão fora vítima da sua condição de judeu e, como tal, alvo de uma
discriminação política e religiosa. Uma outra resolução foi votada, com o nº
11972012, em que se recomenda ao governo que proceda a uma reintegração de
Barros Basto no Exército a título póstumo, «em categoria nunca inferior àquela
a que o militar em causa teria direito se sobre o mesmo não tivesse sido
instaurado o processo que levou ao seu afastamento». Só a persistência da Sra.
Dra. Isabel Ferreira Lopes, alicerçada nas s
uas convicções, educada numa
família de sólidos valores, onde era comum e face às injustiças vividas as
mulheres dizerem às mais novas que as «lágrimas vertem-se para dentro».
A justiça tardou, mas chegou… «Tudo se ilumina
para aquele que busca a luz», lembram-se? Uma outra divisa que o Capitão usou
foi Adonai li ve-lo irá, ou seja, «O
Senhor está comigo e nada receio».
Como curiosidade, o Capitão Barros Basto é
tio-bisavô da conhecida actriz Daniela Ruah.
FIM
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