quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Capitão Barros Basto



CAPITÃO BARROS BASTO - II PARTE

Mas a nível militar as coisas também não estavam a correr melhor. O Estado Novo, nascido em 1933, estava a impor a sua marca autoritária. Aliás, o próprio movimento Obra do Resgate estava também a incomodar algumas autoridades, especialmente as religiosas pois viam que muitos dos novos judeus, que mesmo tendo sido baptizados anteriormente, estavam a fugir do seio da Igreja Católica. Então o Capitão começou a ser colocado cada vez mais longe do Porto, tendo sido exonerado do comando da Direcção da Casa da Reclusão, sua residência fixa, sendo que o escândalo que rebentou agravou mais ainda a situação.
Dada a fragilidade das provas, os processos penais instaurados, primeiro na policia de segurança pública e, posteriormente, por via de nova denúncia anónima no Tribunal Militar, foram logo derrubadas e o Capitão foi ilibado das graves acusações que lhe haviam sido imputadas. Mas o mal estava feito: o exército abre-lhe um processo disciplinar alegando que as cerimónias da circuncisão a que Barros Basto assistia eram imorais e incompatíveis com a sua situação de militar! Todo o processo ignorou propositadamente que a cerimónia e ritual da circuncisão (brit milá, em hebreu) são inerentes à religião judaica e é o sinal da aliança entre Deus e os homens. Deus, através de Abraão, indicou a este e aos seus descendentes a execução desta cerimónia. Curioso: em 1894 o oficial francês Alfred Dreyfus é acusado de traição num processo todo ele tingido de antissemitismo, que viria a ficar na história e manchada a reputação do exército francês. Três décadas depois o caso repete-se, desta vez em Portugal, mas o Capitão Barros Basto não vai ter o seu Émile Zola para o defender nas páginas dos jornais. O processo disciplinar, terminado em Julho de 1937, acarretou a sua saída compulsiva do exército. Sete meses depois, em 16 de Janeiro de 1938, vê uma das obras da sua vida, a Sinagoga, a ser inaugurada.
Já afastado do exército, vai ter uma acção determinante no período da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), ajudando centenas e centenas de judeus a fugirem do ódio nazi.
IMG_4462Entretanto os tempos eram outros, o ambiente político não era favorável à sua acção, à grandeza da obra que encetou. A Obra do Resgate não era compatível para um homem só. Lentamente esta vai caindo no esquecimento e muitos judeus voltaram a temer pela exposição pública da sua religiosidade e regressam ao anonimato de sempre e, à medida que os tempos iam passando, a sua religiosidade ia-se diluindo até se perder...
O Capitão vai ficando debilitado, desmotivado, deprimido, situação a que também não foi alheia a doença e posterior morte por tuberculose de um filho, no início da década de 50.
Barros Basto, aliás Ben-Rosh, faleceu em 1961 e foi sepultado em Amarante, sua terra natal, envergando a sua farda de militar e com a bandeira nacional cobrindo o caixão. Dois dias antes de falecer disse à sua filha: «Um dia a justiça vai ser feita». Foi, mas muito tarde.
Homem denso e culto, ao mesmo tempo provido de uma simplicidade que só os grandes sabem ter. Dizia-nos alguém que com ele conviveu, que tinha sempre uma história para contar, mesmo a pessoas de mais baixa instrução ou condição social. A sua ligação à Escola Filosófica Portuense, e ao Grupo Renascença, que teve na revista Águia o seu apogeu, mostram que o Capitão pertencia à elite do, e parafraseando um título de Sampaio Bruno, Porto Culto. Conviveu com Teixeira Rego, e Leonardo Coimbra, entre outros.
Intervém a nível cívico e politico. Empenhou-se na campanha do MUD (Movimento da Unidade Democrática), em 1945. A Obra do Resgate personificou também a resistência à Igreja Católica e ao imobilismo de uma sociedade conservadora, com atavismos de séculos.
O processo ardiloso e cobarde que lhe montaram, mostra o quanto ele era perigoso para o status quo de então e gerador de muitas invejas.
vol_sinagoga_portoTerá sido o Capitão Barros Basto algo ingénuo em algumas das suas acções? Talvez. Deverá ter pensado que o Estado Novo e hierarquia da Igreja Católica iam deixar em paz a Obra do Resgate. Mas tal não aconteceu, como sabemos.
O estranho é que, em 1978, quatro anos depois do 25 de Abril de 1974, o exército português vem insistir junto da família, que entretanto tinha começado o processo para a reabilitação do Capitão, que este tinha sido condenado por actos homossexuais! Precisamente aqueles pelos quais ele tinha sido absolvido à época. Para quem tinha conquistado uma Cruz de Guerra não merecia tanto laxismo por parte das entidades militares e em plena democracia.
Em 31 de Outubro de 2011, com o apoio do bastonário da Ordem dos Advogados Portugueses, a neta do Capitão, Sra. Dra. Isabel Ferreira Lopes, actual vice-presidente da Comunidade Israelita do Porto, deu entrada no parlamento português uma petição para reabilitar a memória de Barros Basto. Finalmente a 29 de Fevereiro de 2012 todos os parlamentares, por unanimidade, votaram a sua reabilitação e foi oficialmente concluído que o Capitão fora vítima da sua condição de judeu e, como tal, alvo de uma discriminação política e religiosa. Uma outra resolução foi votada, com o nº 11972012, em que se recomenda ao governo que proceda a uma reintegração de Barros Basto no Exército a título póstumo, «em categoria nunca inferior àquela a que o militar em causa teria direito se sobre o mesmo não tivesse sido instaurado o processo que levou ao seu afastamento». Só a persistência da Sra. Dra. Isabel Ferreira Lopes, alicerçada nas s
uas convicções, educada numa família de sólidos valores, onde era comum e face às injustiças vividas as mulheres dizerem às mais novas que as «lágrimas vertem-se para dentro».
A justiça tardou, mas chegou… «Tudo se ilumina para aquele que busca a luz», lembram-se? Uma outra divisa que o Capitão usou foi Adonai li ve-lo irá, ou seja, «O Senhor está comigo e nada receio».
Como curiosidade, o Capitão Barros Basto é tio-bisavô da conhecida actriz Daniela Ruah.


FIM



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